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O CÂNON DO ANTIGO TESTAMENTO: HISTÓRIA E SIGNIFICADO

Jovem lê a Bíblia à luz de velas em uma casa antiga.
Este artigo tem por finalidade aprofundar o estudo sobre o cânon do Antigo Testamento, explorando o significado do termo e discutindo quem tem a autoridade para definí-lo.

Analisaremos também os três fatores principais que fundamentam a inclusão de um livro no cânon e discutiremos o “silêncio profético,” um conceito chave que ajuda a entender a relação entre os livros canônicos e os apócrifos. Caso não tenha lido o artigo anterior, sugerimos que o faça clicando aqui, pois ele proporciona uma base importante para o entendimento do presente estudo.

A Escritura canônica, e somente ela, é a regra de fé – Tomás de Aquino

INTRODUÇÃO


O cânon (ou cânone) bíblico não é uma seleção humana e arbitrária de certos livros, mas o reconhecimento das Escrituras que foram inspiradas por Deus.

“Cânon” é uma palavra que tem origens hebraicas e gregas que se referem a um instrumento de medição e, por extensão, a uma “norma”“regra” ou "padrão". Dessa forma, o cânon bíblico pode ser entendido como o conjunto de textos que medem e regulam a fé e a conduta do povo de Deus.

No hebraico, o termo “qãnnesh” significa “vara de medir”, e no grego, “kanõn” também representa uma “vara reta” utilizada para medição. Este termo evoluiu para descrever tanto o instrumento de medida quanto aquilo que é medido. Portanto, os livros canônicos são aqueles que têm a “medida” correta ou o “padrão” divino.

Assim, a Igreja reconhece, mas não define o cânon; ela simplesmente é sua guardiã e ministra.

Ao longo dos séculos, muitos livros foram escritos sobre temas religiosos, históricos e culturais. Porém, nem todos foram considerados canônicos, ou seja, aptos para guiar a fé e a prática dos crentes. A autoridade de um livro canônico deriva de sua inspiração divina, e essa inspiração é o que lhe confere legitimidade no cânon.

FATORES BASILARES


A inclusão de um livro no cânon exige o cumprimento de três fatores basilares:

  1. A Inspiração Divina: O livro deve ser reconhecido como inspirado por Deus. Um texto sem evidência de inspiração divina não pode ser considerado canônico, por mais valioso que seja para a tradição religiosa.

  2. O Reconhecimento do Livro pelo Povo de Deus: Os livros canônicos foram amplamente aceitos pelo povo de Deus ao longo dos tempos. Esse reconhecimento não se deu por decreto humano, mas por uma aceitação natural e espiritual que evidenciavam a autoridade divina desses textos.

  3. A Preservação do Livro: Para ser canônico, o livro deveria ser preservado e utilizado continuamente pelo povo de Deus. A preservação de um livro é um sinal de que ele tem um valor duradouro e uma função espiritual essencial.

Como enfatiza o teólogo Geisler: “Nenhum artigo de fé deve basear-se em documento não canônico, não importando o valor religioso desse texto. Os livros divinamente inspirados e autorizados são o único fundamento para a doutrina”¹.

Nesse sentido somente as Escrituras inspiradas por Deus podem constituir a base de nossa fé e prática. Mas isso nos leva à outra pergunta: a quem, então, cabe definir o cânon do Antigo Testamento?

QUEM DEFINE O CÂNON?


Em Romanos 3.1-2, o apóstolo Paulo elucida a posição especial dos judeus em relação às Escrituras:

“Qual é, logo, a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão? Muita, em toda maneira, porque, primeiramente, os oráculos de Deus lhe foram confiados.”

Esta passagem destaca a singularidade dos judeus como guardiões dos oráculos de Deus, responsáveis por preservar a revelação divina em todas as suas formas – mandamentos, promessas e profecias. Ao longo dos séculos, essa responsabilidade foi cumprida com zelo, e os judeus atuaram como uma espécie de bibliotecários das Escrituras.

Os oráculos foram confiados a eles, e o Antigo Testamento foi redigido por eles no idioma hebraico, com exceção de pequenos trechos em aramaico. Como “bibliotecários da fé”, os judeus preservaram o Antigo Testamento para que ele chegasse puro e incorrupto às gerações futuras, como testemunhado por Jesus e pelos apóstolos.

Ainda em Romanos 9.4, o apóstolo Paulo destaca que dos judeus “é adoção de filhos, e a glória, e os concertos [ou alianças], e a lei, e o culto, e as promessas”.

A Igreja, portanto, não é a "mãe" do cânon, mas sim sua “serva”, recebendo-o do povo judeu. A visão de que o cânon é uma prerrogativa da Igreja Romana é equivocada, já que aos judeus israelitas é que foram confiados os oráculos de Deus, tendo sido os primeiros guardiões da Palavra do Senhor.

CÂNON E SILÊNCIO PROFÉTICO: A INTERRUPÇÃO DA INSPIRAÇÃO


Um dos marcos mais significativos na história do cânon do Antigo Testamento é o período conhecido como "Silêncio Profético." Esse termo se refere ao longo intervalo de tempo que se seguiu após a morte de Malaquias, último dos profetas canônicos, e estendeu-se até o advento de João Batista e, posteriormente, Jesus.

Durante esse período o Espírito da profecia escriturística havia cessado em Israel, e nenhum novo livro foi inspirado, resultando em uma ruptura na revelação profética.

No estudo anterior, mencionamos que a Bíblia Hebraica contém 22 livros, que, em outras tradições, podem aparecer divididos em 24 devido à separação dos livros de Juízes/Rute, e também de Jeremias/Lamentações.

Flávio Josefo, famoso historiador judeu, faz referência a essa quantidade exata de livros em seu texto Contra Apião (1.1), onde diz o seguinte:

“Pois não temos uma multidão inumerável de livros entre nós, que discordam entre si e que se contradizem mutuamente, mas somente vinte e dois livros, que são tidos, de forma justa, como divinos.”

Esses 22 livros formam a totalidade das Escrituras hebraicas e foram organizados em três divisões principais: A Lei (Torá), Os Profetas (Nevi’im) e Os Escritos (Ketuvim). Esta divisão tripartida foi uma estrutura estabelecida e mantida pelo povo judeu e, segundo a tradição, coube a Esdras e à Grande Sinagoga a organização dos livros em suas respectivas categorias.

Com a morte de Malaquias, último profeta da sequência dos profetas menores, ocorreu o que os rabinos chamaram de “Silêncio Profético.”

Evidências do Silêncio Profético em Fontes Rabínicas

A tradição judaica descreve este período como um tempo em que “o Espírito Divino da revelação profética se afastou de Israel” (Talmud Babilônico, Yoma 9b).

O rabino Samuel bar Inia, por exemplo, destacou que cinco coisas estavam ausentes no Segundo Templo: “o fogo, a arca, o Urim e o Tumim, o óleo da unção e o Espírito Santo [de profecia]” – ou seja, elementos que simbolizavam a presença e a comunicação divina em Israel.

Essa ausência reforça o fato de que, após os profetas Ageu, Zacarias e Malaquias, não houve mais profetas inspirados por Deus para registrar novas Escrituras. Esse “silêncio” seria rompido apenas no período do Novo Testamento, quando João Batista surge com um ministério profético, preparando o caminho para Cristo.

Evidências do Silêncio Profético no Livro Apócrifo de Macabeus

A referência ao “Silêncio Profético” também aparece no livro apócrifo de I Macabeus 9.27, que reflete o período de opressão vivenciado pelo povo judeu, e afirma que “não houve igual desde a época em que tinham desaparecido os profetas.”

Embora os livros apócrifos sejam valorizados por seu conteúdo histórico, a própria menção à ausência profética nesse escrito indica que não foram considerados inspirados. Essa evidência interna sustenta que os apócrifos, embora preservados na tradição da Septuaginta (LXX), não fazem parte do cânon hebraico, pois foram escritos após a interrupção da inspiração divina escriturística.

Evidências do Silêncio Profético em Flávio Josefo

Ainda em Contra Apião (1.41), Josefo reforça o conceito de que a profecia cessou, ao escrever:

“Desde Artaxerxes (sucessor de Xerxes) até nossos dias, tudo tem sido registrado, mas não tem sido considerado digno do mesmo tipo de crédito dado aos escritos anteriores, porque a sucessão dos profetas cessou.”

Essa declaração de Josefo corrobora a visão de que o período entre Malaquias e o Novo Testamento foi uma era sem revelação profética escriturística. Ele explica que, apesar de os judeus registrarem os acontecimentos desse período, esses escritos não foram considerados "dignos do mesmo tipo de crédito” porque “a sucessão dos profetas cessou.”

Essa percepção de "dignidade profética" é o que diferenciou o cânon da Escritura sagrada dos demais escritos, ainda que valiosos.

Portanto, o “Silêncio Profético” é um dos grandes motivos que sustentam a exclusão dos livros apócrifos do cânon do Antigo Testamento. Esse intervalo de silêncio reforça que o cânon já estava fechado. Jesus e os apóstolos referiam-se exclusivamente ao conjunto de textos reconhecidos pelos judeus da época – a Bíblia Hebraica.

Desta forma, a própria estrutura e tradição judaicas corroboram que o período profético terminou com Malaquias, selando o cânon do Antigo Testamento e definindo os parâmetros para o cânon que a Igreja também viria a adotar. Em síntese, a Bíblia Hebraica com seus 22 livros originais constitui o cânone definitivo do Antigo Testamento, conforme recebido dos judeus.

A BÍBLIA QUE JESUS USAVA


Jesus utilizava e referenciava a Bíblia Hebraica em Seu ministério, como evidenciado em Lucas 24.44:

“E disse-lhes: São estas as palavras que vos disse estando ainda convosco: convinha que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na Lei de Moisés, e nos Profetas, e nos Salmos.”

Aqui, Jesus faz referência à divisão tripartida da Bíblia Hebraica, reconhecendo a autoridade dos livros canônicos de Sua época. A organização da Bíblia Hebraica inicia-se com Gênesis e termina em Crônicas, diferentemente da Septuaginta que inicia-se com Gênesis e termina em Malaquias.

Em Mateus 23.34,35, Jesus menciona o sangue justo derramado desde Abel (Gênesis) até Zacarias (Crônicas), confirmando que Ele usava e tinha familiaridade com a Bíblia Hebraica.

Essa evidência mostra que a Bíblia utilizada por Jesus corresponde, em conteúdo, ao atual Antigo Testamento protestante. A única diferença é que, influenciado pela LXX, o cânon cristão é organizado por temas, enquanto a Bíblia Hebraica segue uma ordem diferente.

CONCLUSÃO


Os livros canônicos são aqueles que refletem o padrão divino, servindo como fundamento para nossa doutrina. Constituem, portanto, a fonte primária da nossa regra de fé e prática, servindo de lâmpada e luz, como expressa muito bem o salmista: “Lâmpada para os meus pés é a Tua palavra, e luz para o meu caminho” (Sl 119.105).

Neste estudo aprendemos que o cânon não é definido pela Igreja, mas foi recebido por ela do povo judeu, e que Jesus validou a Bíblia Hebraica como Escritura autoritativa.

Por fim, vimos que o “silêncio profético” e a ausência de autoridade profética em textos apócrifos foram determinantes para a sua não inclusão no cânon. Na próxima lição, examinaremos as doutrinas e os elementos controversos dos apócrifos, compreendendo por que eles não fazem parte das Escrituras Sagradas.

Christo Nihil Praeponere – “A nada dar mais valor que a Cristo”

FONTE


¹ GEISLER, Norman; Nix, William. Introdução Bíblica. SP: Vida, 1997, p. 75.


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