O conceito de arrependimento, quando atribuído a Deus, frequentemente gera dúvidas e questionamentos. Afinal, como um Deus imutável pode "se arrepender"? As Escrituras apresentam diversos momentos em que Deus é descrito como tendo se arrependido, como no caso do Dilúvio ou na rejeição de Saul como rei.
Por outro lado, a Bíblia também afirma que Deus não é homem para se arrepender. Como conciliar essas ideias sem contradizer a essência divina?
Neste estudo, analisaremos profundamente o significado do arrependimento divino, distinguindo entre a imutabilidade de Deus em Seu caráter e as mudanças em Suas interações com a humanidade. Por meio de exemplos bíblicos, compreenderemos como o comportamento humano pode influenciar a aplicação dos atributos de Deus, levando à manifestação de juízo ou misericórdia.
TEXTO-BASE
Gênesis 6.6,7
Então, arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a terra, e pesou-lhe em seu coração. E disse o Senhor: Destruirei, de sobre a face da terra, o homem que criei, desde o homem até ao animal, até ao réptil e até à ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito.
O QUE SIGNIFICA ARREPENDER-SE
Segundo o Léxico de Strong¹, o verbo hebraico "nacham" (נָחַם), traduzido como "arrependeu-se", significa “mudar de ideia”. Essa mudança de ideia, por sua vez, produz uma mudança de comportamento ou intenção, ou seja, ela gera também uma mudança de atitude.
Livingston observa que o arrependimento de Deus não indica falha em Suas ações, mas reflete Suas respostas ao comportamento humano: “O arrependimento divino não brota da tristeza por más ações feitas. São as mudanças na relação do homem com Deus que resultam em mudanças nos procedimentos de Deus com o homem”.²
Assim, enquanto o homem age em rebeldia ou obediência, Deus ajusta Suas ações, seja estendendo a misericórdia ou executando o juízo.
Em Gênesis 6, a corrupção humana já havia atingido níveis intoleráveis. Deus, em Sua longanimidade, concedeu 120 anos para que aquela geração se arrependesse. Contudo, ao persistirem no pecado, Deus mudou Sua atitude, passando de longanimidade para juízo, executado por meio do Dilúvio.
OUTROS EXEMPLOS BÍBLICOS DO ARREPENDIMENTO DIVINO
A Bíblia apresenta outros momentos em que Deus "se arrependeu". Esses exemplos nos ajudam a entender melhor a interação divina com a humanidade e o tema do arrependimento divino.
1. Moisés e o Bezerro de Ouro (Êxodo 32.14)
Quando o povo de Israel construiu um bezerro de ouro para adoração, Deus declarou que os destruiria. Moisés, porém, intercedeu pelo povo, e Deus "se arrependeu do mal que dissera que havia de fazer ao seu povo". Aqui, o "mal" refere-se ao juízo divino, que foi suspenso pela intercessão de Moisés, evidenciando que Deus é movido por misericórdia quando há súplica genuína.
2. O Arrependimento de Nínive (Jonas 3.10)
Por causa do pecado os ninivitas já estavam sentenciados por Deus, mas, ao ouvirem a mensagem de Jonas, se arrependeram de forma verdadeira e sincera. Em resposta, Deus também "se arrependeu do mal que tinha dito que lhes faria e não o fez". Nesse caso, o arrependimento e conversão do homem provocaram o arrependimento em Deus.
Ou seja, porque os homens se arrependeram e se converteram dos seus maus caminhos, Deus também se arrependeu, isto é, "mudou de ideia" em relação ao mal que tinha dito que lhes faria, suspendendo a execução do juízo.
Assim, enquanto Deus é imutável em Seu caráter, Ele é dinâmico em Sua interação com o homem.
3. As Promessas Condicionais em Jeremias (Jeremias 18.9,10)
Deus declarou que, ao prometer bênçãos a um povo, essas bênçãos poderiam ser revogadas se esse povo se rebelasse contra Ele. O princípio é claro: “Se ele fizer o mal diante dos meus olhos, não dando ouvidos à minha voz, então me arrependerei do bem que tinha dito que lhe faria.” A relação entre Deus e o homem é moldada pela resposta humana, que pode atrair juízo ou bênção dos céus.
O PRINCÍPIO BÍBLICO APRESENTADO
Deus é imutável em Sua essência e caráter. Ele é bom, justo e santo, e esses atributos nunca mudam. Ele não muda de ideia por ignorância ou falha, mas por causa da interação dinâmica com o homem. Seu arrependimento revela Sua soberania e graça, não uma possível instabilidade como pensam alguns.
O Senhor jamais revoga Suas bênçãos sem motivo justo. No entanto, quando o homem se desvia, Deus ajusta Suas ações de acordo com Sua justiça e santidade. Isso significa que Sua imutabilidade não o torna inflexível em Suas interações com a humanidade. Na verdade, o arrependimento divino reflete a aplicação de diferentes aspectos de Seu caráter em diferentes contextos.
Por exemplo:
- Deus é amor (I João 4.8), mas também é fogo consumidor (Hebreus 12.29).
Esses atributos são exercidos em momentos diferentes, dependendo da relação do homem com Ele. Se um cristão permanece fiel, experimenta o amor e as promessas de Deus. No entanto, se se desviar, enfrentará a disciplina divina. Essa dinâmica é exemplificada em II Crônicas 15.2: “O Senhor está convosco, enquanto vós estais com ele; e, se o buscardes, o achareis; porém, se o deixardes, vos deixará” a vós.
Enquanto servimos a Deus em fidelidade, Sua bênção e favor estão estendidos sobre nós. No momento em que nos desviamos dEle e passamos a viver em pecado, sua longanimidade entra em ação, concedendo-nos tempo para arrependimento. A questão é que a longanimidade cessa, ou seja, ela tem fim. É exatamente nesse momento que o juízo entra em ação.
Essa mudança na atitude de Deus em relação ao homem é reflexo da mudança de atitude do homem em relação a Deus. Ora, é incompatível que o Senhor lhe abençoe e retenha a bênção ao mesmo tempo. Ou uma coisa ou outra, mas a mudança entre uma coisa e outra é resultado do arrependimento (mudança de ideia) da parte de Deus.
E OS TEXTOS QUE AFIRMAM QUE DEUS NÃO SE ARREPENDE?
Algumas passagens, como I Samuel 15.29 e Números 23.19, afirmam que Deus "não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa". Essa aparente contradição é resolvida ao compreender o contexto dessas declarações.
1. O Caso de Saul e Samuel
Deus havia escolhido Saul como rei sobre Israel, mas veio a rejeitá-lo posteriormente. Essa rejeição se deu em face da contínua desobediência de Saul à voz de Deus:
“Arrependo-me de haver posto Saul como rei” (I Sm 15.11), no entanto, o mesmo capítulo também afirma: “Aquele que é a Força de Israel não mente nem se arrepende” (v. 29). Aqui, o arrependimento refere-se à retirada do favor divino de Saul, enquanto a imutabilidade refere-se à decisão definitiva de Deus. Saul perdeu o trono, e isso não seria revogado.
Observe que se Saul buscasse a Deus em arrependimento genuíno, o Senhor o perdoaria dos seus pecados, mas o perdão divino não lhe restauraria o trono de Israel: “Porquanto tu rejeitaste a palavra do Senhor, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei” (v. 23).
Essa decisão era definitiva e irrevogável e nada que Saul fizesse poderia alterar a sentença proclamada.
Então, Samuel disse a Saul: “O Senhor tem rasgado de ti hoje o reino de Israel e o tem dado ao teu próximo, melhor do que tu” (I Sm 16.28).
Deus não disse que faria, mas que já havia feito. É nesse sentido que Samuel disse que Deus não mente e nem se arrepende. O Senhor não estava mentindo quando disse que havia rejeitado a Saul como rei. A Palavra de Deus era verdadeira e, sendo aquela decisão uma decisão definitiva, o Senhor não mudaria de ideia (se arrependeria) em relação a ela.
2. O Caso de Balaque e Balaão
O rei Balaque tentou fazer com que Balaão amaldiçoasse Israel, mas Deus usou Balaão para abençoar o Seu povo. Em razão disso, Balaque determinou que subissem outro monte e ali tornassem a realizar sacrifícios ao Senhor.
Sua esperança era que, mudando de monte e fazendo novos sacrifícios, Deus mudaria de ideia em relação a Israel e, ao invés de bênção, o Senhor permitiria ao profeta proferir maldição. Nessa ocasião Deus se revelou outra vez a Balaão e determinou-lhe que anunciasse Sua palavra ao rei:
“Levanta-te, Balaque, e ouve; inclina os teus ouvidos a mim, filho de Zipor. Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa; porventura, diria ele e não o faria? Ou falaria e não o confirmaria? Eis que recebi mandado de abençoar; pois ele tem abençoado, e eu não o posso revogar. Não viu iniquidade em Israel, nem contemplou maldade em Jacó; o Senhor, seu Deus, é com ele e nele, e entre eles se ouve o alarido de um rei” (Nm 23.18-21).
Isso significa que Deus não mudaria Sua bênção enquanto Israel permanecesse fiel.
Não havia iniquidade em Israel e nem mesmo maldade na casa de Jacó. Essa fidelidade do povo era a base para a continuidade da bênção, ou seja, não havia qualquer razão para que Deus amaldiçoasse a Israel exercendo qualquer tipo de juízo contra Seu povo.
Deus não mentiu quando os abençoou e não se arrependeria (mudaria de ideia) em relação a eles porquanto não havia nenhum motivo justo para isso. Relembremo-nos, porém, da promessa condicional destacada em Jeremias: “Se ele fizer o mal diante dos meus olhos, não dando ouvidos à minha voz, então me arrependerei do bem que tinha dito que lhe faria.”
Uma Estratégia Perversa
Balaão entendeu que enquanto Israel fosse fiel a Deus, as bênçãos do Senhor estariam sobre eles. No entanto, enganado e seduzido pelo prêmio das riquezas materiais que o rei Balaque lhe tinha oferecido, o profeta teve uma ideia perversa:
Já que Deus era com o povo, a estratégia seria colocar o povo contra Deus.
Assim, Balaão ensinou Balaque a lançar tropeços diante dos filhos de Israel, de maneira que mulheres moabitas foram enviadas ao arraial do povo de Deus a fim de seduzi-los e, obtendo sucesso, fizessem com que comessem dos sacrifícios da idolatria e se prostituíssem com elas, pecando contra o Senhor (Ap 2.14).
Diante do pecado e rebelião de Seu povo, "a ira do Senhor se acendeu contra Israel" (Nm 25.3), de maneira que o juízo da parte de Deus foi executado: "E os que morreram daquela praga foram vinte e quatro mil" (v. 9). Observamos, portanto, que Deus não muda de ideia em relação às suas bênçãos sem motivo plausível, mas quando o povo se rebela, Ele muda de ideia, pois sendo santo e justo, precisa executar Sua santa justiça.
CONCLUSÃO
O arrependimento de Deus é uma expressão de Sua justiça, graça e soberania. Ele permanece imutável em Seu caráter e essência, mas interage com a humanidade de forma dinâmica, respondendo adequadamente às atitudes humanas em relação a Ele.
Quando o homem se arrepende dos seus pecados, Deus demonstra misericórdia; quando persiste no erro, Ele exerce juízo.
Esse entendimento nos desafia a viver em obediência e fidelidade, confiando na imutabilidade do caráter de Deus e em Sua disposição de perdoar e restaurar aqueles que se voltam para Ele. Como está escrito: “O Senhor está convosco, enquanto vós estais com ele.” Que possamos manter nossa relação com Deus firme e alinhada à Sua vontade, experimentando Suas bênçãos e evitando Seu juízo.
Se pecarmos, porém, devemos aproveitar a Sua longanimidade a fim de confessarmos os nossos pecados e alcançar perdão. É maravilhoso saber que Deus se arrepende do juízo quando nós verdadeiramente nos arrependemos das nossas transgressões.
Conforme nos diz o apóstolo João em sua primeira epístola: "Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo para que não pequeis; e, se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o Justo. E ele é a propiciação pelos nossos pecados" (2.1,2).
Christo Nihil Praeponere — “A nada dar mais valor que a Cristo”
NOTAS
¹ HUB, Bible. Interlinear Bible. Disponível em <https://biblehub.com/hebrew/5162.htm>
² LIVINGSTON, George H. Comentário Bíblico Beacon, Vol 1. CPAD, 2016, p. 47.
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