Qual é o impacto do Reino de Deus na vida de seus súditos? Como ele transforma o ser humano por completo ou, por outro lado, como é possível que forças contrárias se infiltrem nesse Reino para corrompê-lo?
Essas perguntas estão no centro da breve, mas profunda, Parábola do Fermento. Narrada nos evangelhos de Mateus e Lucas, essa parábola usa um elemento cotidiano, o fermento, para ilustrar verdades espirituais. No entanto, sua interpretação tem sido alvo de debates ao longo dos séculos.
Neste estudo exploraremos o significado dessa parábola, contextualizaremos os elementos apresentados e analisaremos as duas principais interpretações que ela sugere. Mais do que isso, veremos como sua mensagem pode ser aplicada à vida cristã de forma prática e transformadora.
TEXTOS-BASE
Lucas 13.20,21
“E disse outra vez: A que compararei o Reino de Deus? É semelhante ao fermento que uma mulher, tomando-o, escondeu em três medidas de farinha, até que tudo levedou.”
Mateus 13.33
“Outra parábola lhes disse: O Reino dos céus é semelhante ao fermento que uma mulher toma e introduz em três medidas de farinha, até que tudo esteja levedado.”
OBJETO DA COMPARAÇÃO
Os evangelistas Mateus e Lucas deixam claro que o objeto da comparação é o Reino de Deus. O propósito da parábola é ilustrar verdades espirituais relacionadas a esse Reino. No entanto, como em muitas parábolas, o significado não é diretamente explicado, o que abre espaço para diferentes interpretações.
O FERMENTO: AGENTE DE CRESCIMENTO OU CORRUPÇÃO?
O fermento é o elemento central da parábola e sua interpretação é crucial. Ele possui características como ação interna, rápida, silenciosa e eficaz ao influenciar toda a massa. Contudo, o simbolismo do fermento na Bíblia é ambíguo, podendo representar tanto o bem quanto o mal. Vejamos como ele é tratado nas Escrituras:
O Fermento no Antigo Testamento
No Antigo Testamento, o fermento geralmente é associado a algo negativo. Nenhuma oferta de manjares poderia conter fermento (Lv 2.11) e durante a Festa dos Pães Asmos, por exemplo, era proibido consumir pão fermentado pelo período de 7 dias, e a desobediência resultaria em ser excluído do povo de Israel (cf. Êx 12.19).
Ao comentar sobre este fato, Fílon de Alexandria – um judeu contemporâneo de Jesus e dos apóstolos – escreveu o seguinte:
“A respeito do significado mais profundo, este é digno de atenção, que aquilo que é levedado e fermentado cresce, enquanto aquilo que não é levedado fica pequeno. Cada uma dessas coisas é um símbolo de um tipo de alma: uma é altiva e cheia de arrogância, a outra é imutável e prudente…”¹
Por outro lado, o fermento também aparece em um contexto positivo. Em Levítico 7.13, ele é usado em ofertas pacíficas e de louvor: “Com os bolos oferecerá pão levedado como sua oferta, com o sacrifício de louvores da sua oferta pacífica”.
Essa dualidade mostra que o fermento não possui um único significado fixo, pois este depende do contexto em que é mencionado.
O Fermento no Novo Testamento
No Novo Testamento, o fermento é predominantemente usado como símbolo negativo. Jesus alertou contra o fermento dos fariseus, saduceus e herodianos, que simbolizava falsas doutrinas e hipocrisia (Mt 16.6,12; Mc 8.15). Paulo também usou o fermento como figura da “maldade e da malícia”, em contraste com a sinceridade e a verdade contida nos pães asmos (I Co 5.6-8).
No entanto, a Parábola do Fermento apresenta um desafio interpretativo. O fermento aqui deve ser entendido em seu aspecto positivo ou negativo? Para responder a essa pergunta, precisamos considerar o contexto e as possíveis interpretações.
Outros Símbolos Importantes
Os símbolos na Bíblia frequentemente assumem significados diferentes dependendo do contexto. Por exemplo:
- Leão: Pode representar tanto Cristo, o leão da tribo de Judá (Ap 5.5) quanto Satanás, que anda em nosso derredor buscando a quem possa tragar (I Pe 5.8).
- Serpente: É usada para simbolizar Satanás (Gn 3.1; Ap 12.9), mas também aponta para Cristo na serpente levantada por Moisés no deserto (Jo 3.14).
- Semente: Representa a Palavra de Deus (Parábola do Semeador), os filhos do Reino ou do maligno (Parábola do Trigo e do Joio) e também o próprio Reino de Deus (Parábola da Semente).
Esses exemplos demostram que certos símbolos podem representar tanto algo positivo quanto negativo. O contexto é que determina seu significado.
AS TRÊS MEDIDAS DE FARINHA
As três medidas de farinha também têm gerado muitas interpretações. Desde os primeiros séculos, cristãos associaram essas medidas a conceitos variados, como:
- A Trindade;
- Espírito, alma e corpo;
- Os três filhos de Noé - Sem, Cam e Jafé;
- Judeus, samaritanos e gentios;
- Ásia, África e Europa; e
- Muitos outros.
Como é óbvio, não há consenso sobre um significado específico para esse elemento. É possível que ele sirva apenas para ilustrar a ideia de uma quantidade significativa de farinha sendo influenciada pela medida de fermento.
DUAS INTERPRETAÇÕES POSSÍVEIS E ANTAGÔNICAS
Em face das informações já apresentadas, duas interpretações predominantes e distintas tem sido atribuídas à parábola em análise. A primeira é mais antiga, a outra é mais recente na história da Igreja. Vejamos.
I. O FERMENTO COMO INFLUÊNCIA POSITIVA DO REINO DE DEUS
Essa é a interpretação mais tradicional e antiga. Segundo essa visão, o fermento representa o Reino de Deus e sua ação transformadora na vida do ser humano. Assim como o fermento atua de forma interna e silenciosa, o Reino transforma o interior do cristão, afetando todos os aspectos de sua vida: espírito, alma e corpo.
Nesse sentido, a graça de Deus – tal como o fermento – faz levedar toda a massa, isto é, produzindo crescimento. Desta maneira, os valores do Reino atingem a consciência, afeições, mente e vontade dos seus súditos de maneira que venha a alcançar, de forma plena e completa, a transformação interior e eficaz.
Em síntese, a ilustração representaria o crescimento eficaz e interior do Reino de Deus dentro de nós.
Aplicações Práticas
Para aqueles que tomam essa interpretação como correta, as seguintes aplicações se fazem essenciais:
- Crescimento Espiritual: O cristão deve buscar transformação contínua, permitindo que o Reino de Deus molde todos os aspectos de sua vida. Porque “a vereda dos justos é como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito” (Pv 4.18).
- Vida Consistente: A transformação deve ser completa, abrangendo pensamentos, palavras e ações. “E o mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e todo o vosso espírito, e alma, e corpo sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (I Ts 5.23).
- Vigilância: O cristão deve avaliar continuamente seu progresso espiritual, garantindo que está crescendo na graça e no conhecimento de Deus, pois a estagnação e inconstância não condizem com a vida cristã (cf. II Pe 3.18).
II - O FERMENTO COMO INFLUÊNCIA NEGATIVA DE CORRUPÇÃO
Essa interpretação, que é mais recente, vê o fermento como símbolo de corrupção e pecado que pode infiltrar-se na vida do cristão e da Igreja. Assim como um pouco de fermento leveda toda a massa, o pecado ou o falso ensino pode comprometer todo a vida cristã e até mesmo a Igreja local.
O pecado de Acã, por exemplo, afetou todo Israel, de maneira que Deus não os auxiliou em batalha (cf. Js 7). Em sua primeira epístola aos Coríntios, o apóstolo Paulo, ao tratar de um rapaz que estava dormindo com a mulher de seu próprio pai, advertiu a Igreja assim:
“Não é boa a vossa jactância. Não sabeis que um pouco de fermento faz levedar toda a massa? Alimpai-vos, pois, do fermento velho, para que sejais uma nova massa, assim como estais sem fermento. Porque Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós. Pelo que façamos festa, não com o fermento velho, nem com o fermento da maldade e da malícia, mas com os asmos da sinceridade e da verdade” (5.6-8).
Isso deixa claro que, caso nenhuma providência fosse tomada, toda Igreja de Corinto seria levedada e contaminada pelo fermento da malícia e da maldade. Portanto, a ausência de tratamento e disciplina na comunidade cristã local tem o potencial de comprometer a obra de Cristo por completo.
De forma semelhante, em sua epístola aos Gálatas, o apóstolo afirmou:
“Separados estais de Cristo, vós os que vos justificais pela lei; da graça tendes caído. Porque nós, pelo espírito da fé, aguardamos a esperança da justiça. Porque, em Jesus Cristo, nem a circuncisão nem a incircuncisão têm virtude alguma, mas, sim, a fé que opera por amor. Corríeis bem; quem vos impediu, para que não obedeçais à verdade? Esta persuasão não vem daquele que vos chamou. Um pouco de fermento leveda toda a massa” (5.4-9).
Sendo assim, permitir que o velho fermento permaneça é, na verdade, uma sentença de contaminação de todo o ser ou mesmo de toda a comunidade. Neste contexto, um pouco de fermento (falsa doutrina) foi capaz de separar de Cristo aqueles que estavam se justificando pela lei.
Eles caíram da graça e foram impedidos de obedecer à verdade de tal maneira que a obra de Cristo realizada neles foi totalmente comprometida por um pouco de fermento.
Aplicações Práticas
Para aqueles que tomam essa interpretação como correta, as seguintes aplicações se fazem essenciais:
- Cuidado Pessoal: O cristão deve evitar qualquer tipo de pecado que possa contaminá-lo, mantendo-se íntegro diante de Deus. Afinal, é preciso seguir “a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor, tendo cuidado de que ninguém se prive da graça de Deus, e de que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe, e por ela muitos se contaminem” (Hb 12.14,15).
- Disciplina na Igreja: É essencial que a Igreja corrija erros e pecados em seu meio para evitar a contaminação coletiva. A jactância não é boa e a ausência de atitude e correção acarreta na desaprovação de Jesus: “Tenho contra ti o tolerares que Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensine e engane os meus servos, para que se prostituam e comam dos sacrifícios da idolatria” (Ap 2.20).
- Vigilância Contra Falsos Ensinamentos: A Igreja deve estar atenta a doutrinas que distorcem a verdade do Evangelho a fim de não caírem da graça de Deus. É necessário, pois, batalhar pela fé que uma vez foi dada aos santos (cf. Jd 3).
CONCLUSÃO
A Parábola do Fermento é uma lição poderosa sobre o Reino de Deus e sua interação com a humanidade. Dependendo da interpretação, ela pode simbolizar tanto a influência positiva do Reino, que transforma o ser humano de dentro para fora, quanto a infiltração de elementos corruptos que ameaçam a integridade da obra divina.
Independentemente da visão adotada, essa parábola nos desafia a refletir sobre nossa vida espiritual. Estamos permitindo que o Reino de Deus molde nosso caráter e comportamento? Ou estamos deixando que o "fermento do mal" nos afaste da verdade? Que possamos ser vigilantes, buscando continuamente a transformação interior e protegendo-nos contra tudo que pode corromper nossa fé.
O chamado da parábola é claro: deixe o Reino de Deus transformar completamente sua vida e vigie para que nada interfira nessa obra divina.
Christo Nihil Praeponere — “A nada dar mais valor que a Cristo”
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NOTA
¹ SNODGRASS, Klyne. Compreendendo Todas as Parábolas de Jesus. CPAD, 2019, p. 332.
Excelente exposição. A exploração do contexto bíblico (do antigo e do novo testamento) em que o fermento foi tomado como exemplo didático e a aplicação prática de cada um destes conceitos será essencial para que o leitor compreenda perfeitamente o tema.
ResponderExcluirA conclusão plausível é que podemos ter um ponto de vista (sim) fundamentado no texto sagrado, todavia ele não desqualifica as outras posições igualmente baseadas no texto sagrado, a depender do contexto e da aplicabilidade.
Amém, irmão! Agradeço pelo comentário.
ExcluirÓtima abordagem, realmente nos faz refletir sobre a interpretação da parábola e os detalhes que a aplicação leva a considerar. Que estejamos vigilantes em todo o tempo.
ResponderExcluirAmém, irmã! Agradeço pelo comentário.
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